quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Não te toque a noite nem o ar nem a aurora

Poema V - Não te toque

Não te toque a noite nem o ar nem a aurora,
só a terra ,a virtude dos cachos,
as maçãs que crescem ouvindo a água pura,
o barro e as resinas de teu país fragrante.

Desde Quinchamalí onde fizeram teus olhos
aos pés criados para mim na Fronteira
és a greda escura que conheço:
em teus quadris toco de novo todo o trigo.

Talvez tu não saibas, araucana,
que quando antes de amar-te me esqueci de teus beijos
meu coração ficou recordando tua boca

e fui como um ferido pelas ruas
ate que compreendi que havia encontrado
amor, meu território de beijos e vulcões.

Pablo Neruda, 1904-1973

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O teu perfume, amada - em tuas cartas


Soneto a Katherine Mansfield

O teu perfume, amada - em tuas cartas
Renasce, azul... - são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou.. nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima!... (Nunca te aprtas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Passei ontem a noite junto dela

Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
apenas entre nós - e eu vivia
no doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela
naqueles olhos negros! Sá a via!
Música mais do céu, mais harmonia
aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
é sentir todo o seio palpitando...
Cheio de amores! E dormir solteiro!


* Sergio Faraco (org.). Livro dos Sonetos: 1500-1900: poetas portugueses e
brasileiros. Porto Alegre : L&PM, 2002.

domingo, 23 de novembro de 2008

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida

FANATISMO

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já tôda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

«Tudo no mundo é frágil, tudo passa...»
Quando me dizem isto, tôda a graça
Duma bôca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de-rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Principio e Fim!...»


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Poeiras de crepúsculos cinzentos

CINZENTO

Poeiras de crepúsculos cinzentos.
Lindas rendas velhinhas, em pedaços,
Prendem-se aos meus cabelos, aos meus braços,
Como brancos fantasmas, sonolentos...

Monges soturnos deslizando lentos,
Devagarinho, em misteriosos passos...
Perde-se a luz em lânguidos cansaços...
Ergue-se a minha cruz dos desalentos!

Poeiras de crepúsculos tristonhos,
Lembram-me o fumo leve dos meus sonhos,
A névoa das saudades que deixaste!

Hora em que teu olhar me deslumbrou...
Hora em que a tua boca me beijou...
Hora em que fumo e névoa te tornaste...

Florbela Espanca, 1894-1930

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Como o gênio da noite, que desata


MARIETA

Como o gênio da noite, que desata
o véu de rendas sobre a espada nua,
ela solta os cabelos... Bate a lua
nas alvas dobras de um lençol de prata.

O seio virginal que a mão recata,
embalde o prende a mão... cresce, flutua...
Sonha a moça ao relento... Além da rua
preludia um violão na serenata.

Furitivos passos morrem no lajedo...
Resvala a escada do balcão discreta...
Matam lábios os beijos em segredo...

Afoga-me os suspiros, Marieta!
Ó Surpresa! ó palor! ó pranto! ó medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta!

Castro Alves, 1847-1871

* Sergio Faraco (org.). Livro dos Sonetos: 1500-1900: poetas portugueses e
brasileiros. Porto Alegre : L&PM, 2002.

domingo, 2 de novembro de 2008

Quando, na sombra espessa em que eu vivia, a calma

Quando, na sombra espessa em que eu vivia, a calma
Do teu sorriso entrou, como o sol na floresta,
Caminhei para ti, na mão tendo uma palma,
E chegaste, doirada, entre flores de giesta.

Ástrea aliança de uma alma a sonhar por outra alma!
O luar nascia triste, a tarde era funestra...
Diante de mim as mãos uniste, palma a palma:
Sorriste... Para ver o céu nada me resta!

De joelheiras de ferro, estarcão e acha d'armas,
Verde escudo em sinople, eu fui, pelos Poemas,
O cavaleiro afeito às gritas e aos alarmas.

Vi esculcas no azul, que eram anjos: as sagas
Que te vinham buscar, sumiram-se blasfemas:
Mas, Senhora, por ti fiquei cheio de chagas...