quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro

VI

NOS BOSQUES, perdido, cortei um ramo escuro
e aos lábios, sedento, levantei seu sussurro:
era talvez a voz da chuva chorando
um sino fendido ou um coração cortado.

algo que de tão longe me parecia
oculto gravemente, coberto pela terra,
um grito ensurdecido por imensos outonos,
pela entreaberta e úmida escuridão das folhas.

Por ali, despetando dos sonos do bosque,
o ramo de avelã cantou sob minha boca
e seu vagante olor subiu por meu critério

como se buscassem de repente as raízes
que abandonei, a terra perdida com minha infância,
e me detive ferido pelo aromo errante.

Pablo Neruda, 1904-1973
NERUDA, P. Cem sonetos de amor. Porto Alegre : L&PM, 1997.
Tradução de Carlos Nejar.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Quanta mulher no teu passado, quanta!


Supremo enleio

Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo à tua porta...
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda...

Florbela Espanca, 1894-1930

Poemas de Florbela Espanca, Martins Fontes, 1996 - S. Paulo, Brasil

Extraído de http://zezepina.utopia.com.br/poesia/poesia003.html acesso em 08 set. 2008.

domingo, 7 de setembro de 2008

Hino da Independência

Letra: Evaristo da Veiga, 1799-1837
Música: D. Pedro I, 1798-1834


Já podeis, da Pátria filhos,
Ver contente a mãe gentil;
Já raiou a liberdade
No horizonte do Brasil.

Brava gente brasileira!
Longe vá... temor servil:
Ou ficar a pátria livre
Ou morrer pelo Brasil.

Os grilhões que nos forjava
Da perfídia astuto ardil...
Houve mão mais poderosa:
Zombou deles o Brasil.

Brava gente brasileira!
Longe vá... temor servil:
Ou ficar a pátria livre
Ou morrer pelo Brasil.

Não temais ímpias falanges,
Que apresentam face hostil;
Vossos peitos, vossos braços
São muralhas do Brasil.

Brava gente brasileira!
Longe vá... temor servil:
Ou ficar a pátria livre
Ou morrer pelo Brasil.

Parabéns, ó brasileiro,
Já, com garbo varonil,
Do universo entre as nações
Resplandece a do Brasil.

Brava gente brasileira!
Longe vá... temor servil:
Ou ficar a pátria livre
Ou morrer pelo Brasil.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Gosto de ti apaixonadamente


Gosto de ti apaixonadamente
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até ao brilho desta chama quente.

A tua linda voz de água corrente
Ensinou-me a cantar... e essa canção
Foi ritmo nos meus versos de paixão,
Foi graça no meu peitodescrente.

Bordão a amparar ninha cegueira,
Da noite negra o mágico farol,
Cravos rubros a arder numa fogueira!

E eu, que era neste mundo uma vencida,
Ergo a cabeça ao alto, encaro o Sol!
- Águia real, aponta-me a subida!

Florbela Espanca, 1894-1930

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O pesar de não tê-la encontrado mais cedo


O pesar de não tê-la encontrado mais cedo,
De não ter visto o céu quando havia esperança!
Som febril, ástreo som da alma de citaredo,
Por que vos não ouvi quando ainda era criança?

Quantas vezes o luar me sorria em segredo,
Quantas vezes a tarde era serena e mansa!
E o horizonte ante mim ressurgia tão ledo,
Que eu dizia: "Mas qua anjo entre nuvens avança?"

Hoje, depois de velho, e tão velho, mais velho
Que uma figura antiga e doce do Evangelho,
É que entre astros, trilhado o azul claro, a encontrei...

E pude, contemplando o sol da sua face,
Atirar a seus pés para que ela os pisasse,
Meus andrajos de pobre e meu manto de rei...

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Recordarás aquela quebrada caprichosa


IV

RECORDARÁS aquela quebrada caprichosa
onde os aromas palpitantes subiram,
de quando em quando um pássaro vestido
com água e lentidão: traje de inverno.

Recordarás os dons da terra:
irascível fragância, barro de ouro,
ervas do mato, loucas raízes,
sortílegos espinhos como espadas.

Recordarás o ramo que trouxeste,
ramo de sombra e água com silêncio,
ramo como uma pedra com espuma.

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vamos ali onde não espera nada
e achamos tudo o que está esperando.

Pablo Neruda, 1904-1973
NERUDA, P. Cem sonetos de amor. Porto Alegre : L&PM, 1997.
Tradução de Carlos Nejar.