sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Amor! Anda o luar, todo bondade


Noturno

Amor! Anda o luar, todo bondade,
Beijando a Terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que anda pisando as ruas da cidade!

E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!

Minh'alma que eu te dei, cheia de mágoas,
É nesta noite o nenufar de um lago
Estendendo as asas brancas sobre as águas!

Poisa as mãos nos meus olhos, com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...

Florbela Espanca, 1894-1930

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Matilde, nome de planta ou pedra ou vinho


I

MATILDE, nome de planta ou pedra ou vinho,
do que nasce da terra e dura,
palavra em cujo crescimento amanhece,
em cujo estio rebenta a luz dos limões.

Nesse nome correm navios de madeira
rodeados por enxames de fogo azul marinho,
e essas letras são a água de um rio
que em meu coração calcinado desemboca.

Oh meu nome descoberto sob uma trepadeira
como a porta de um túnel desconhecido
que comunica com a fragância do mundo!

Oh invade-me com tua boca abrasadora,
indaga-me, se queres, com teus olhos noturnos,
mas em teu nome deixa-me navegar e dormir.

Pablo Neruda, 1904-1973

NERUDA, Pablo. Cem sonetos de amor. Porto Alegre : L&PM, 1997.
Tradução de Carlos Nejar.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Tu vens de longe; a pedra


Retrato de Maria Lúcia

Tu vens de longe; a pedra
suavizou seu tempo
para entalhar-te o rosto
ensimesmado e lento

Teu rosto como um templo
voltado ara o oriente
remoto como o nunca
eterno como o sempre

e que subitamente
se aclara e movimenta
como se a chuva e o vento

cedessem seu momento
a pura claridade
do sol do amor intenso


Fonte: http://br.geocities.com/edterranova/vinicius57.htm acesso em 26 ago. 2008.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Áspero amor, violeta coroada de espinhos


III

ÁSPERO AMOR, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado,
lança das dores, corola da cólera,
por que caminhos e como te dirigiste a minha alma?

Por que precipitaste teu fogo doloroso,
de repente, entre as folhas frias de teu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
Que flor, que pedra, que fumaça, mostraram minha morada?

O certo é que tremeu a noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com seu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,

enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas e espinhos
abriu no coração um caminho queimante.

Pablo Neruda, 1904-1973
NERUDA, P. Cem sonetos de amor. Porto Alegre : L&PM, 1997.
Tradução de Carlos Nejar.

domingo, 24 de agosto de 2008

Viver não pude sem que o fel provasse


Via-Láctea XIV

Viver não pude sem que o fel provasse
Desse outro amor que nos perverte e engana:
Porque homem sou, e homem não há que passe
Virgem de todo pela vida humana.

Por que tanda serpente atra e profana
Dentro d'alma deixei que se aninhasse?
Por que, abrasado de uma sede insana,
A impuros lábios entreguei a face?

Depois dos lábios sôfregos e ardentes,
Senti - duro castigo aos meus desejos -
O gume fino de perversos dentes...

E não posso das faces poluídas
Apagar os vestígios desses beijos
E os sangrentos sinais dessas feridas!

Olavo Bilac, 1865-1918

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Vagueiam suavemente os teus olhares


Vagueiam suavemente os teus olhares
Pelo amplo céu franjado em linho:
Comprazem-se as visões crepusculares...
Tu és uma ave que perdeu o ninho.

Em que nichos doirados, em que altares
Repoisas, anjo errante, de mansinho?
E penso, ao ver-te envolta em véus de luares,
Que vês no azul o teu caixão de pinho.

És a essência de tudo quanto desce
Do solar das celestes maravilhas...
- Harpa dos crentes, cítola da prece.

Lua eterna que não tivesse fases,
Cintilas branca, imaculada brilhas,
E poeiras de astros nas sandálias trazes...