terça-feira, 29 de abril de 2008

Adornou meu quarto a flor do cardo


VISITA

Adornou meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almíscar recendente;
Vesti-me com a púrpura fulgente,
Ensaiando meus cantos, como um bardo:

Ungi as mãos e a face com o nardo
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Misteriosa visita a quem aguardo.

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre à húmida pousada?...

Nem princesas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
às portas de ouro e luz do meu amor!

Que suspensão, que enleio, que cuidado


Que suspensão, que enleio, que cuidado
É este meu, tirano Cupido?
Pois tirando-me enfim todo o sentido
Me deixa o sentimento duplicado.

Absorta no rigor de um duro fado,
Tanto de meus sentidos me divido,
Que tenho só de vida o bem sentido
E tenho já de morte o mal logrado.

Enlevo-me no dano que me ofende,
Suspendo-me na causa de meu pranto
Mas meu mal (ai de mim!) não se suspende.

Ó cesse, cesse, amor, tão raro encanto
Que para que de ti não se defende
Basta menos rigor, não rigor tanto.

Soror Violante do Céu, 1602-1693

Antologia da Poesia do Período Barroco, Moraes Editores, 1982 - Lisboa, Portugal.
Extraído de http://zezepina.utopia.com.br/poesia/poesia248.html acesso em 29 abr. 2008.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo


II

AMOR, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com ma chuva.
Em Taltal não amanhece a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono. de água de quadris,
até ser só tu, só eu juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura de água de Boroa,
pensar que separados por trens e nações

tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa dos cravos.

Pablo Neruda, 1904-1973

Cem sonetos de amor / Pablo Neruda ; tradução de Carlos Nejar. -- Porto Alegre : L&PM, 1997. -- (Coleção L&PM pocquet; 19).
P. 8.

domingo, 27 de abril de 2008

Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta


GRITO DE ALMA

Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
Repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva arrasta
Inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, amor, nessa altivez madrasta,
Um gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, duma crueza vasta,
Quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe
Na fulgurante luz do teu olhar tão doce
À mágoa minha eterna, a minha eterna dor.

Vai. Segue o teu destino. A onda quer-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho da tua raça
Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor ...

sábado, 26 de abril de 2008

Amor é um fogo que arde sem se ver


Amor é um fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;

é um não querer mais que bem querer;
é solitário andar por entre a gente;
é um não contentar-se de contente;
é cuidar que se ganha em se perder;

é estar-se preso por vontade;
é servir quem vence o vencedor;
é um ter com quem mata a lealdade.

Mas como causar pode o seu favor
nos mortais corações conformidade,
sendo a si tão contrário o mesmo amor?
Luis de Camões, 1524?-1580



Livro dos sonetos : 1500-1900 : (poetas portugueses e brasileiros) / org. Sergio Faraco. -- Porto Alegre : L&PM, 2002. -- (Coleção L&PM pocquet; 3).
P. 16.